terça-feira, 26 de agosto de 2008

Terminação do Anjo

O que é a memória? É a memória uma reconstituição mais ou menos fiel da vida passada ou é uma invenção do acontecido? “Terminação do Anjo” é uma ficção sobre essa ficção que se chama memória. O autor, Daniel Abrunheiro, escreveu no Caramulo as páginas de um romance sobre um homem que entrega livros antigos em mão a coleccionadores. Um cliente, um livro. Mas há duas coisas a propósito de Camilo Ardenas, a personagem primordial do romance. Primeira: as pessoas que ele contacta morrem. Segunda: ele não se lembra de nada. Ele não tem consciência de não ter memória.
“Um estremeção mudo tirou o homem de entre os vivos. Camilo Ardenas, no assento da coxia, soube de imediato que à janela tinha passado a viajar um morto. O expresso da noite continuou a rolar com suavidade. Dentro, as luzes de presença aureolavam a galeria de cabeças adormecidas. Fora, a fronteira de chapa da auto-estrada exilava do País as matas e os casais. Os postes intermitentes alinhados ao longo das margens da via permitiram a Camilo confirmar o estupor congelado na cara do defunto: acima do protesto inutilizado na boca, os olhos muito abertos e o cabelo já quebradiço e desumano. Agiu com rapidez. Cerrou as pálpebras ao cadáver. Fê-lo com uma espécie de carinho frio. Esperou um pouco. Verificou o alheamento dos outros passageiros. Então, inclinado para o morto como um pássaro carnívoro, soergueu-lhe a lapela e retirou a carteira do bolso interior. Havia muito dinheiro na carteira. Guardou as notas, separando duas de vinte e uma de cinquenta. Devolveu as noventa coroas ao morto para que ele não amanhecesse sem recursos. Antes de repor a carteira no bolso do defunto, consultou-lhe a identidade terminada. O homem da janela tinha sido António Tomás Jesus Duque, casado, cinquenta e dois anos. Camilo Ângelo Dalva Ardenas, solteiro, quarenta e cinco anos, tirou do próprio bolso um lenço roxo de cambraia fina e limpou com escrúpulo o bilhete de identidade e a carteira. Não acreditava que a polícia procurasse impressões digitais na sequência de uma morte tão invejável e tão santa. Se, no entanto, procurasse, haveria de estranhar a falta de impressões – pensou Camilo. Mas não era importante. Foi pensando que fazer, como sempre. E, como sempre, sem pensar, por não poder já recordá-lo, no que estava feito. A vida tinha voltado a seguir viagem para descer no limite do destino. Por volta das seis da manhã, o expresso haveria ainda de parar na penúltima gare do percurso. Se o morto tivesse querido apear-se nessa paragem e se alguém tivesse bilhete para aquela janela, a descoberta do cadáver teria de acontecer antes de Camilo Ardenas estar a salvo. Se assim viesse a suceder, Camilo, o actor, acordaria então, unindo-se à surpresa, à consternação e até ao escândalo gerais da cena. O bilhete do defunto não haveria de contemplar o seu verdadeiro destino antecipado, apenas o nome terminal impresso debaixo do preço e da hora de chegada prevista. Mas Camilo Ardenas não quis repetir a operação de devassa. “Antes de estar a salvo de quê, que ridículo” – disse Camilo sem abrir a boca.”
….
“Muitas vezes lhe sucedeu na vida subir-lhe o coração à boca. Disse muitas coisas sem pensá-las primeiro em silêncio, sofrendo-as quando e enquanto lhe saíam da boca com pedacitos de coração agarrados às sílabas. Porque eram sempre verdadeiras e porque eram coisas que se pensavam a si mesmas. E também porque muitas vezes lhe custava respirar e viver ao mesmo tempo. António Tomás Jesus Duque era de bojo porcicolor, carão e sangue de cevado sanguíneo, comedor de lavagens finas e gordas e especiosas, tomador de vinhos negros e proteicos. Chegava à mesa como quem atinge um merecimento. Quando se ria, ria-se em camadas de gelatina num desdobramento de acordeão de sebo, melhorado pela certeza imediata da sopa em que estagnavam um naco de toucinho e um cano de farinheira. António Tomás, o comedor, era remunerado em comida pelo que prestava a Jesus Duque, o ourives. A leveza algo amaneirada do seu modo comercial, ao balcão como em viagem, apenas cedia à força da gravidade quando a homilia da refeição lhe resumia o mundo à área útil da mesa. Era então que ele pontificava, celebrando, em individualíssimo tabernáculo, o pão e o vinho através do bestiário chacinado para sua saciedade: a lânguida vaca, o porco antropológico, a servil galinha, o galo orgulhoso, o cristão borrego, a perdiz miniatural, o depressivo cavalo; do lado do mar, deitavam-se para ele o bacalhau patriótico, a santa sardinha, o carapau operário, o múltiplo polvo, o linguado fino, o fino tamboril, a marmota frita. António Tomás comia sempre por fora. Há muito se lhe volvera insustentável a percepção do imperecível nojo físico que, sem no querer, causava ao pau-de-incenso em que sua mulher se volvera havia muito, muito pouco depois disso parecido com o amor que arrasta uns e umas aos casamentos. Apropriada e certeiramente chamada Maria do Patrocínio, era uma mulher a quem até o ar livre parecia mal. Frígida que não frívola, com os anos enterrara-se viva nas criptas refrigérias e volitivas das igrejas. Abandonou marido e filhos às respectivas sortes de almas indomesticáveis. Adorava biologias e necrologias de santinhas civis urdidas pela padralhada rural para consumo da mitomania das lavouras mais berçãs, numa irmanação das pagelas ao borda-d’água. Oferecia-se, e era aceite, para limpar, lavar e encerar as casas paroquiais e as camaratas seminárias. Tornar-se amante de padres brancos como o linho litúrgico, como de facto aconteceu, não foi paradoxo de Deus nem tapete vermelhígneo que lhe estendesse o Porco Sujo, antes coerência de alma que usa o corpo para trepar as escadas do primeiro e último foguetão para o Céu.”
Em “Terminação do Anjo”

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Porca Ruça: a melhor amiga do Victor

Saracoteando as gordas ancas pela estrada fora, a porca Ruça segue atrás do dono. Vai ao café do ‘Francês’.
Escolhe, para isso, o passeio de terra batida. “O alcatrão magoa-lhe as patas”, explica Victor Tavares, o proprietário do animal que, há já quatro anos, escapa à tradicional matança do porco. Diz não ser capaz de matá-la e que “vai morrer de velha”.
No estabelecimento comercial, em Carvalhais, concelho de S. Pedro do Sul, ninguém estranha a chegada de Victor e da sua porca. “É como um cão. Segue-o para todo o lado”, dizem à porta do café e em toda a aldeia.
A habilidade da Ruça já chegou a ser motivo de aposta. “Um amigo meu não acreditava que ela anda atrás de mim para todo o lado e apostou 50 euros. A meio do caminho, desistiu”, conta Victor Tavares, que gosta de ver os animais à solta pela quinta. E, chamando a atenção para a cor rosada da Ruça, acrescenta: “É como com as pessoas: se tiverem liberdade, têm melhor cor”. Foi, aliás, por Ruça andar muitas vezes à solta, que Victor se deu conta de que a porca o seguia por toda a propriedade enquanto ele trabalhava. Os passeios pela quinta e por toda a aldeia tornaram-se uma rotina que já nenhum dos dois, nem ele nem ela, podem dispensar.
Está na hora do regresso dos dois a casa. O caminho é feito com lentidão. Inclui paragens. Ruça estanca à porta da morada do pai de Victor. Força o portão do curral. “Vai ver os filhotes”, comenta o dono, enquanto a ajuda a entrar para a loja onde se encontram leitões, galinhas e garnizés. A porca ronca aos filhos em jeito de cumprimento. É difícil fazê-la sair, de novo, para a rua. Victor apela, então, ao estômago de Ruça. Sem nunca usar de violência nem levantar nunca a voz, oferece-lhe ração dum balde que lhe coloca à frente do focinho. A porca segue-o.
Mais à frente, outra paragem. “É a casa do padeiro. Cheira-lhe a farinha”, explica o dono. Vagarosa, Ruça abandona a ombreira da casa do padeiro e faz-se ao caminho. Vai comendo as ervas do passeio. “ Anda, Ruça, que eu tenho de ir trabalhar”, pede Victor. Mais uns passos e ei-los em casa. Para que o animal entre no curral, existe um segredo só dos dois, até agora. “Tenho de entrar primeiro e chamá-la. Ela entra e fecho a porta. Depois, eu salto o portão”, ensina Victor.
Tudo indica que sempre assim vai ser. Até que a morte os separe.
Sandra Bernardo
Publicado no Jornal do Centro e na edição on line do Expresso em Fevereiro de 2008

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

O Céu da minha Rua

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Faço minhas as palavras dele

A propósito do livro "Terminação do Anjo", de Daniel Abrunheiro.
O Daniel Abrunheiro não é Chef de cozinha, mas escreve como se confeccionasse iguarias raras com as palavras, sentidos de paladares e ritmos temperados como especialidades marinadas de entristecimentos e euforias – daquelas que um condenado deve levar da última ceia para a forca e esquecer que o mundo acaba amanhã.
O seu último livro, Terminação do Anjo, é uma refeição completa. Podia-lhe acontecer como ao Alain Fournier depois de editar O Grande Meaulnes: desaparecer para sempre. Quer dizer, o legado de um imenso talento ficava cá. Nada mais lhe seria necessário escrever, criar, alinhar entre parágrafos ou biografar. Só que o Daniel não se ia assim como assim, de malas feitas e viagem antecipada. Era bem capaz de lançar ancora às asas de Camilo Ardenas e flutuar para onde nunca mais fosse visto. Mais tarde dir-se-ia que um livro os engolira aos dois.
«Chegou à cervejaria-marisqueira ao quarto para a uma e ofereceu-se aquele que só não era o seu maior prazer literário por ser, de facto e deveras, o único. A leitura, em verso livre, da ementa.
A primeira estrofe abria caldos, açordas e cremes. Um fio de ervas aromáticas doía uma dor fina través essas águas que ressumavam a higiene visceral do pescado. A ideia de moles moluscos partilhando a piscina quente da malga com fibra de peixes caldeirados tornava-se-lhe todo um cerrado monoideísmo de que só lograva largar-se a muito custo.
A segunda estância do cardápio alinhava uma tábua constitucional cujos artigos teriam nadado muito e muito antes de o poeta da ementa e de o cozinheiro seu declamador os terem fixado para sempre em substantivos de uma suculência inelutável: tamboril, robalo, linguado, cherne, dourada, salmão, salmonete, rodovalho, congro, safio, choco.
Já a este ponto da decifração da carta se tornara impossível a António Tomás pôr sopremo ao fervilhar das papilas gustativas, esse campo de morangos para sempre a que ele, desencabrestado de todo, propunha já a terceira canção.
Posto que a apoteose marinha não era solipsista, o poemenu descambava em carnificina: um rosbife túmido e mal passado como um beijo, uma região de vaca afrancesada o suficiente para que lhe chamassem chateaubriand, as costeletinhas de borrego escovado por uma caspa de limoeiro, o honestíssimo e jucundo lombo assado, o bife à Casa que era prego por cravar o cristão céu-da-boca e o agnóstico palato ao lenho da eternidade, o bife tártaro em hordas corredoras de estepes e a sempre moranga costeleta de novilho que, pelo cravo do vacum, muito ajudava a exilar a rosa porcum do poemário de cervejarias forradas por dentro a azulejo fresco como coração de viúva nova.
António Tomás abençoou, comendo durante, os bons préstimo de Jesus Duque e seus candelabros de prata e sua margem de lucro e seus candelabros de lucro e seu lucro que em prata davam tão boa margem de cervejaria-marisqueira. Os cubos de pão torrado bebiam sozinhos o creme de frutos-do-mar, permitindo-lhe para sempre a introspecção rápida do espumante gelado e a consequente extracção do cérebro pelo nariz como na técnica balsâmica dos faraós.Finíssimas fatias de presunto, bêbedas da poesia pura do puro sumo de melão, lavavam a boca entre as atrocidades dentais, das que menor não foi a ingestão, sem guarnições tolas de acréscimo, de um linguado de longitudinal fractura exposta à manteiga e à salsa, sentido o humílimo parentesco desta com o trevo-mijão.A toalha, branca de neve, dispunha anões solícitos e sete: a tacinha de estanho com o detergente digital ungido de limão químico; o recebedouro de caroços cuspidos sem banda sonora; o cinzeiro terminal para o cubano filosófico; o pratito quase proletário de manteigas de alho e queijitos de cabra em série; o guardanapo de linho pesado como um dote de arca ou um cinzeiro de grés; a chapa perfurada com o número da mesa; e a mão esquerda de António Tomás, que, sufocada até à gangrena pelo anel matrimonial, ourejava em vão o prol de um amor extinto.» em "Terminação do Anjo", de Daniel Abrunheiro

sábado, 9 de agosto de 2008

Filhos da Madrugada: Jacques Brel

(clicar no título para ouvir)
Rubrica emitida na Emissora das Beiras, de segunda a sexta, entre as 23h e as 24h.
Produção Anoitecer ao Tom Dela, realização Sandra Bernardo.

Filhos da Madrugada: Ella Fitzgerald

(Clicar no título para ouvir)
Rubrica emitida na Emissoras das Beiras, de segunda a sexta, entre as 23h e as 24h.
Produção Anoitecer ao Tom Dela, realização Sandra Bernardo.

Edição nona do programa Montanha Mágica, emitido na Emissora das Beiras, às quartas-feiras, entre as 0 horas e as duas da manhã

(Clicar no título para ouvir a primeira hora)
Programa produzido e realizado por Daniel Abrunheiro.

Edição nona do programa Montanha Mágica, emitido na Emissora das Beiras, às quartas-feiras, entre as 0 horas e as duas da manhã

(Clicar no título para ouvir a segunda hora)
Programa produzido e realizado por Daniel Abrunheiro.

Citação

“Estamos hoje mais pobres e pedem-nos para sermos optimistas, estamos hoje menos livres e pedem-nos para sermos optimistas, estamos hoje mais dependentes e pedem-nos para sermos optimistas, estamos hoje mais fracos e pedem-nos para sermos optimistas. Há algo de tão errado neste optimismo que só me reforça o pessimismo.”
José Pacheco Pereira in Abrupto

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A arte dele é esmagadora: www.olhares.com/xptu. Confirme.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Cemitério de Viseu