sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

A melhor amiga do Victor

Saracoteando as gordas ancas pela estrada fora, a porca Ruça segue atrás do dono. Vai ao café do ‘Francês’. Escolhe, para isso, o passeio de terra batida. “O alcatrão magoa-lhe as patas”, explica Victor Tavares, o proprietário do animal que, há já quatro anos, escapa à tradicional matança do porco. Diz não ser capaz de matá-la e que “vai morrer de velha”. No estabelecimento comercial, em Carvalhais, concelho de S. Pedro do Sul, ninguém estranha a chegada de Victor e da sua porca. “É como um cão. Segue-o para todo o lado”, dizem à porta do café e em toda a aldeia.

A habilidade da Ruça já chegou a ser motivo de aposta. “Um amigo meu não acreditava que ela anda atrás de mim para todo o lado e apostou 50 euros. A meio do caminho, desistiu”, conta Victor Tavares, que gosta de ver os animais à solta pela quinta. E, chamando a atenção para a cor rosada da Ruça, acrescenta: “É como com as pessoas: se tiverem liberdade, têm melhor cor”.

Foi, aliás, por Ruça andar muitas vezes à solta, que Victor se deu conta de que a porca o seguia por toda a propriedade enquanto ele trabalhava. Os passeios pela quinta e por toda a aldeia tornaram-se uma rotina que já nenhum dos dois, nem ele nem ela, podem dispensar. Está na hora do regresso dos dois a casa. O caminho é feito com lentidão. Inclui paragens. Ruça estanca à porta da morada do pai de Victor. Força o portão do curral. “Vai ver os filhotes”, comenta o dono, enquanto a ajuda a entrar para a loja onde se encontram leitões, galinhas e garnizés. A porca ronca aos filhos em jeito de cumprimento. É difícil fazê-la sair, de novo, para a rua. Victor apela, então, ao estômago de Ruça. Sem nunca usar de violência nem levantar nunca a voz, oferece-lhe ração dum balde que lhe coloca à frente do focinho. A porca segue-o.

Mais à frente, outra paragem. “É a casa do padeiro. Cheira-lhe a farinha”, explica o dono. Vagarosa, Ruça abandona a ombreira da casa do padeiro e faz-se ao caminho. Vai comendo as ervas do passeio. “ Anda, Ruça, que eu tenho de ir trabalhar”, pede Victor. Mais uns passos e ei-los em casa. Para que o animal entre no curral, existe um segredo só dos dois, até agora. “Tenho de entrar primeiro e chamá-la. Ela entra e fecho a porta. Depois, eu salto o portão”, ensina Victor. Tudo indica que sempre assim vai ser. Até que a morte os separe.

Cerieiro artesanal de S. Pedro do Sul é único no País

Em Carvalhais, no concelho de S. Pedro do Sul, toda a gente conhece o cerieiro António Tavares. É o único do País que ainda trabalha de forma artesanal. Tem 69 anos de idade. Trabalha há 60, tendo aprendido o ofício com o pai. Os cortiços das abelhas não têm segredos para ele. As encomendas de lâminas de favos para as colmeias chegam de todo o continente, das ilhas e, até, de Espanha.

No barracão de madeira construído por ele, os utensílios artesanais misturam-se com os brinquedos dos netos, uma televisão de onde irradia o programa da Fátima Lopes e uma salamandra que aquece o ambiente. A mulher, o filho e a nora ajudam na arte. Duas cadelas preguiçam ao pé do lume. “O processo é idêntico ao do azeite. Os favos chegam aqui sujos. Vão para o lagar onde são centrifugados. O mel sai para um lado, o lixo e o pólen para outro e a cera limpa para outro. Depois, fazem-se umas barras como as do sabão azul”, explica o artífice.

Começa, então, o trabalho de equipa. A família distribui-se pela maquinaria artesanal. As barras, de um castanho claro, passam para as mãos de Fátima, a nora de António Tavares, que a deita para um caldeirão de água quente a fim de derretê-la em “banho-maria”. O caldeiro, engenhoca inventada por Victor, filho do cerieiro, tem um filtro que separa a sujidade da cera, que assoma à superfície. “Tal e qual o café”, conta o ancião. Uma tábua de cozinha, introduzida na vasilha, faz o resto: a cera, de um amarelo translúcido, adere e sai em finas lâminas, que Maria, mulher de António, introduz em água e, seguidamente, numa máquina, cunhando com alvéolos as placas.

Do lado oposto, António Tavares espera. Nas mãos segura uma régua, recebendo com cuidado as chapas marcadas com pequenos favos. Nessa altura, já Victor está a postos para as cortar em pequenos rectângulos, que se juntam ao amontoado correspondente a uma encomenda, que há-de atravessar o oceano, em direcção à Madeira. “Esta é boa. É de mil quilogramas. Vai render mil euros”, diz o artesão. E conclui: “As contas aqui não se fazem ao fim do mês. Fazem-se no fim do ano”. O negócio rende pouco, mas mantém a família unida em torno de uma arte que já vem de longe.