Antiga estância sanatorial continua à espera do futuro
Placas a dizer “vende-se” são parte integrante da paisagem do Caramulo. Dos dez antigos sanatórios votados ao abandono desde a erradicação da tuberculose, em meados dos anos 70, três estão para transacção: o sanatório Bela Vista, que nos tempos da doença albergou marinheiros e pertence a um médico de Coimbra, a “Antiga Zona” ou Bloco Operatório, propriedade de uma empresa de Albergaria, e o Sanatório Central, pertença de empresários de um café-restaurante da vila. O Grande Sanatório, propriedade da família Lacerda, continua à espera de um investidor que, com os herdeiros do fundador da estância sanatorial, estabeleça uma parceria a fim de dar um destino rentável ao edifício.
Dos outros seis sanatórios abandonados e sem destino, há um que dá especial dor de cabeça ao presidente da Junta de Freguesia: o Sanatório Infantil, pertença do Estado. Há seis anos que Pedro Adão procura obter dos sucessivos governos respostas e soluções para o edifício. Durante cinco anos e sete meses, as cartas enviadas por Pedro Adão não tiveram eco. Em Junho, porém, na volta do correio, o presidente da Junta de Freguesia do Guardão recebeu a carta por que tanto ansiava. Sem uma resposta definitiva, dizia, no entanto, que “brevemente, o caso do sanatório infantil irá ter uma solução”. Depois da carta de resposta do Governo, e porque já lá vão cinco meses, Pedro Adão voltou a escrever. Sem troco, até hoje.
O desamparo não se verifica, contudo, apenas nos sanatórios. Casas comerciais e de habitação continuam à espera de um qualquer futuro. As propriedades deixaram de ser cuidadas, os jardins tratados, as sebes cortadas. “Para isso”, diz Pedro Adão, “não há remédio. A Junta de Freguesia não pode e não deve cuidar de património privado”. O futuro do Caramulo passa, segundo o autarca, pelo turismo. Que turismo, é pergunta a que ninguém consegue ainda responder. Para a terra estão pensados viveiros e um parque de campismo com “bungalows”, projecto orçado em 3 milhões de euros e chumbado pelo Peter, o anterior Quadro Comunitário de Apoio (QCA). “A alternativa”, refere o autarca, “é tentar que seja aprovado no próximo QCA”. Para o próximo ano, está também previsto um novo tapete para a estrada que liga o Campo de Besteiros ao Caramulo, “facilitando deste modo, o acesso dos turistas à vila.”
Entretanto, o futuro da antiga estância sanatorial vai sendo adiado. Aquela que foi a primeira vila do País a ter central telefónica e rede de saneamento básico espera por resoluções que lhe devolvam a dignidade e o prestígio de outros tempos. Os valores pedidos pelos antigos edifícios clínicos oscilam entre os 150 mil e os 400 mil euros.
“Ninguém pega nisto”
O sonho de voltar a ver a avenida que, com os seus nove metros de largura, rasga o Caramulo – uma inovação para 1920, época em que foi construída – cheia de carros a circular, é partilhado por muitos habitantes da vila. É o caso de António Amorim: chegou ao Caramulo ainda petiz. Viveu muito. Viu outro tanto. Lembra-se de tudo “como se fosse ontem”. Aos 71 anos de idade, olha para a antiga estância com algum desgosto. “Ninguém pega nisto”, diz, enquanto nas mãos o chapéu vai rodando por entre os dedos nervosos. “Os sanatórios estão ao abandono. Os comerciantes andam a tinir. A rapaziada nova vai-se embora porque não há trabalho”. E lembra-se de outros tempos. Tempos em que, aos 20 sanatórios, recolhiam doentes numa taxa de internamentos que ultrapassou, anos a fio, a escala do milhar: “Isto naquela altura é que era Caramulo. Era um mundo. Apesar dos ordenados de miséria, não faltava trabalho nem gente. Havia até senhoras para despejar os penicos”, recorda o antigo caramulano.
À cabeça de António Amorim ocorrem ainda outras lembranças: com apenas 13 anos, andou a transportar pedras para calcetar a rua principal da vila. O “Ti Zé Veneno” pagava-lhe cinco tostões por dia. Um ano depois, acarretava massa para a construção do Grande Sanatório. Passou, aliás, por todos eles, sempre ligado às obras. Primeiro, “as de grande envergadura”. Depois, “as de manutenção”, como quando era preciso, depois de um doente morrer, caiar o quarto e desinfectá-lo com formol. De sorriso tímido desenhado no rosto, António Amorim conta como “mandavam os doentes todos sair e, com a ajuda de uma máquina, desinfectavam o aposento pelo buraco da fechadura.” Ou de quando se falava à boca pequena da presença de Salazar na vila: “Ninguém o via: ele fechava-se com o Dr. João (Lacerda). O presidente do Conselho de Ministros mandou até fazer cá uma casa Dizem que foi para se tratar da doença.”, comenta António. A casa, onde havia uma linha telefónica directa ao posto dos correios, pertence agora à “Americana”, uma senhora que esteve emigrada.
O mundo de António Amorim – o tal “mundo que era o Caramulo” – não existe já. O Sanatório Salazar deu lugar ao Hotel do Caramulo. Dois outros sanatórios foram transformados em casas de habitação. Outros três foram convertidos em lares para idosos. E outro, ainda, é agora a morada de gente com diagnósticos psiquiátricos. Aconteceu também a demolição de alguns. Os restantes esperam um projecto, uma solução airosa para as paredes por dentro vazias que, se tivessem olhos e ouvidos, muito teriam que contar.
(reportagem integral na edição impressa do Jornal do Centro ou em http://www.jornaldocentro.pt/)