
O que é a memória? É a memória uma reconstituição mais ou menos fiel da vida passada ou é uma invenção do acontecido?
“Terminação do Anjo” é uma ficção sobre essa ficção que se chama memória. O autor, Daniel Abrunheiro, escreveu no Caramulo as páginas de um romance sobre um homem que entrega livros antigos em mão a coleccionadores. Um cliente, um livro.
Mas há duas coisas a propósito de Camilo Ardenas, a personagem primordial do romance. Primeira: as pessoas que ele contacta morrem. Segunda: ele não se lembra de nada. Ele não tem consciência de não ter memória.
“Um estremeção mudo tirou o homem de entre os vivos.
Camilo Ardenas, no assento da coxia, soube de imediato que à janela tinha passado a viajar um morto.
O expresso da noite continuou a rolar com suavidade. Dentro, as luzes de presença aureolavam a galeria de cabeças adormecidas. Fora, a fronteira de chapa da auto-estrada exilava do País as matas e os casais. Os postes intermitentes alinhados ao longo das margens da via permitiram a Camilo confirmar o estupor congelado na cara do defunto: acima do protesto inutilizado na boca, os olhos muito abertos e o cabelo já quebradiço e desumano.
Agiu com rapidez. Cerrou as pálpebras ao cadáver. Fê-lo com uma espécie de carinho frio. Esperou um pouco. Verificou o alheamento dos outros passageiros. Então, inclinado para o morto como um pássaro carnívoro, soergueu-lhe a lapela e retirou a carteira do bolso interior. Havia muito dinheiro na carteira. Guardou as notas, separando duas de vinte e uma de cinquenta. Devolveu as noventa coroas ao morto para que ele não amanhecesse sem recursos. Antes de repor a carteira no bolso do defunto, consultou-lhe a identidade terminada.
O homem da janela tinha sido António Tomás Jesus Duque, casado, cinquenta e dois anos. Camilo Ângelo Dalva Ardenas, solteiro, quarenta e cinco anos, tirou do próprio bolso um lenço roxo de cambraia fina e limpou com escrúpulo o bilhete de identidade e a carteira. Não acreditava que a polícia procurasse impressões digitais na sequência de uma morte tão invejável e tão santa. Se, no entanto, procurasse, haveria de estranhar a falta de impressões – pensou Camilo. Mas não era importante. Foi pensando que fazer, como sempre. E, como sempre, sem pensar, por não poder já recordá-lo, no que estava feito.
A vida tinha voltado a seguir viagem para descer no limite do destino. Por volta das seis da manhã, o expresso haveria ainda de parar na penúltima gare do percurso. Se o morto tivesse querido apear-se nessa paragem e se alguém tivesse bilhete para aquela janela, a descoberta do cadáver teria de acontecer antes de Camilo Ardenas estar a salvo. Se assim viesse a suceder, Camilo, o actor, acordaria então, unindo-se à surpresa, à consternação e até ao escândalo gerais da cena. O bilhete do defunto não haveria de contemplar o seu verdadeiro destino antecipado, apenas o nome terminal impresso debaixo do preço e da hora de chegada prevista. Mas Camilo Ardenas não quis repetir a operação de devassa. “Antes de estar a salvo de quê, que ridículo” – disse Camilo sem abrir a boca.”
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“Muitas vezes lhe sucedeu na vida subir-lhe o coração à boca.
Disse muitas coisas sem pensá-las primeiro em silêncio, sofrendo-as quando e enquanto lhe saíam da boca com pedacitos de coração agarrados às sílabas. Porque eram sempre verdadeiras e porque eram coisas que se pensavam a si mesmas. E também porque muitas vezes lhe custava respirar e viver ao mesmo tempo.
António Tomás Jesus Duque era de bojo porcicolor, carão e sangue de cevado sanguíneo, comedor de lavagens finas e gordas e especiosas, tomador de vinhos negros e proteicos. Chegava à mesa como quem atinge um merecimento. Quando se ria, ria-se em camadas de gelatina num desdobramento de acordeão de sebo, melhorado pela certeza imediata da sopa em que estagnavam um naco de toucinho e um cano de farinheira.
António Tomás, o comedor, era remunerado em comida pelo que prestava a Jesus Duque, o ourives. A leveza algo amaneirada do seu modo comercial, ao balcão como em viagem, apenas cedia à força da gravidade quando a homilia da refeição lhe resumia o mundo à área útil da mesa. Era então que ele pontificava, celebrando, em individualíssimo tabernáculo, o pão e o vinho através do bestiário chacinado para sua saciedade: a lânguida vaca, o porco antropológico, a servil galinha, o galo orgulhoso, o cristão borrego, a perdiz miniatural, o depressivo cavalo; do lado do mar, deitavam-se para ele o bacalhau patriótico, a santa sardinha, o carapau operário, o múltiplo polvo, o linguado fino, o fino tamboril, a marmota frita.
António Tomás comia sempre por fora. Há muito se lhe volvera insustentável a percepção do imperecível nojo físico que, sem no querer, causava ao pau-de-incenso em que sua mulher se volvera havia muito, muito pouco depois disso parecido com o amor que arrasta uns e umas aos casamentos. Apropriada e certeiramente chamada Maria do Patrocínio, era uma mulher a quem até o ar livre parecia mal. Frígida que não frívola, com os anos enterrara-se viva nas criptas refrigérias e volitivas das igrejas. Abandonou marido e filhos às respectivas sortes de almas indomesticáveis. Adorava biologias e necrologias de santinhas civis urdidas pela padralhada rural para consumo da mitomania das lavouras mais berçãs, numa irmanação das pagelas ao borda-d’água. Oferecia-se, e era aceite, para limpar, lavar e encerar as casas paroquiais e as camaratas seminárias. Tornar-se amante de padres brancos como o linho litúrgico, como de facto aconteceu, não foi paradoxo de Deus nem tapete vermelhígneo que lhe estendesse o Porco Sujo, antes coerência de alma que usa o corpo para trepar as escadas do primeiro e último foguetão para o Céu.”
Em “Terminação do Anjo”