Quem o avista ao longe, julga tratar-se de uma autoridade: um agente da Guarda Nacional Republicana a pé e numa qualquer missão. Aproximando o olhar, no entanto, descobre que tudo na aparência de Armindo é falso. Tudo, menos o olhar azul de menino.
O aprumo dos militares dá lugar, em Armindo, a um corpo pequeno e frágil apertado numa farda improvisada e presa com arames. A autoridade dos agentes da GNR corresponde, em Armindo, à deficiente articulação das palavras e a um encolher de ombros quando lhe perguntam idade ou apelido. Até já foi preso por causa disso.
O enganoso guarda nacional republicano tem 44 anos e a idade mental de uma criança de seis. Há duas décadas que percorre incansavelmente os caminhos do concelho de Tondela disfarçado de guarda-republicano.
No quintal da casa onde vive com a mãe, na Portela de Santiago de Besteiros, na serra do Caramulo, este menino anacrónico junta calças, camisas, botas, boinas e distintivos oferecidos por antigos militares da GNR. A progenitora conta que o filho lhes pedia para que, quando morressem, lhe deixassem em testamento a farda. Depois, aguardava a chegada da morte dos vizinhos, como um menino travesso que anseia por um brinquedo que demora a chegar. “Às vezes, andava pela casa dizendo: nunca mais morrem…”, conta.
Quando não está “de serviço”, Armindo brinca com carrinhos em estradas desenhadas por ele no cimento com paus de giz branco. Os brinquedos espalhados pelo quintal, as vias de circulação com os traços contínuos e o tracejado para as ultrapassagens, as linhas ferroviárias construídas com vigas de ferro roubadas nas obras dão à casa a aparência de nela morar uma criança que tudo observa para depois reproduzir. E mora. Armindo é um menino fechado num corpo de homem maduro.
É o terceiro dos oito filhos de Hermínia Portela. Começou a balbuciar as primeiras palavras muito mais tarde do que os outros. Os primeiros passos foram difíceis e tardios. Os pais, preocupados, correram para Coimbra e Lisboa à procura de médicos que lhes dissessem o que tinha o seu “menino tão perfeitinho”. A resposta chegou quando Armindo completou três anos: “Nunca descobriram a causa. Suspeitaram de uma meningite, mas não nos deram a certeza. O certo é que Armindo não era igual às outras crianças”, diz Hermínia. E nunca mais foi.
Guarda para sempre
Mas do que Armindo gosta mesmo é de vestir a farda e fazer-se ao caminho. No vão das escadas exteriores da casa encontra tudo o que é necessário. Veste a camisa azul-clara e as calças cinzentas. Põe a gravata azul-escura. Prende com arames as divisas. Como só tem um par de botas altas de cabedal, às vezes substitui-as por botas de borracha. Coloca o coldre feito por ele – pintou-o de branco para condizer com o cinto que lhe ofereceram. Pistola não tem, mas também ninguém repara. Como não lhe deixaram bastão nem pala, um cano de ferro pende-lhe da cintura. Faltam o barrete e os distintivos. Armindo vai variando. Umas vezes, usa um barrete deixado por um militar da GNR entretanto falecido. Outras, é o boné da Marinha que lhe cobre a cabeça. Os distintivos são mais difíceis de arranjar, por isso, Armindo trocou-os por emblemas dos bombeiros.
O retrato está pronto. Ninguém vai notar, de longe, que as calças lhe são demasiado largas. Que as camisas, nem sempre do mesmo tamanho, lhe descaem sobre os ombros. Que tudo está seguro por arames. À distância, parece uma autoridade. Mesmo para um militar da GNR desprevenido. E isso tem trazido problemas, tanto para Armindo como para a Guarda Nacional Republicana. Não raras vezes Armindo foi mandado estancar a marcha. Um dos irmãos já teve de se deslocar a Coimbra, à delegação da Polícia Judiciária, para resgatar o falso GNR. “ Dois elementos da PJ estavam em Campo de Besteiros em serviço quando viram o meu irmão a pé. Era de noite. Pensando tratar-se de um guarda, quiseram dar-lhe boleia. Como ele não respondia e não dava razão de nada, puseram-no no carro e levaram-no para averiguações”, conta.
Os processos em tribunal são mais que muitos. A GNR já lhes bateu à porta muitas vezes, exigindo que Armindo não circule assim vestido. Nada feito. Ninguém consegue mudar-lhe o hábito nem moldar-lhe a vontade. No posto da Guarda Nacional Republicana de Campo de Besteiros até já se habituaram. Todos os novos militares são avisados da existência deste improvável “camarada de armas”. Os agentes da autoridade queixam-se somente das zaragatas em que Armindo se envolve nos cafés quando o embebedam. Temem ainda que um dia seja atropelado, pois o “colega” anda a pé por todo o concelho. Já foram buscá-lo a quase todas as freguesias de Tondela.
Este menino de 44 anos é inofensivo. Os adultos que o rodeiam nem sempre são. Não raras vezes, a doença de Armindo é alvo de maldade. Quando o embebedam, por exemplo.